O Código Civil de 2002 consagrou importantes avanços no Direito de Família e Sucessões, refletindo valores como igualdade, solidariedade familiar e dignidade da pessoa humana. Todavia, passadas mais de duas décadas, a evolução dos arranjos familiares e das demandas sociais impõe nova reflexão legislativa. Nesse cenário, o Projeto de Lei nº 4/2025, fruto dos trabalhos da Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal, propõe ampla reforma do Código Civil, com especial atenção às transformações socioculturais do núcleo familiar e às novas formas de sucessão patrimonial.
O presente artigo examina as principais alterações propostas no campo do Direito de Família e das Sucessões, destacando suas inovações, desafios e impactos práticos.
· Socioafetividade e Multiparentalidade
O projeto acolhe, de forma expressa, o princípio da socioafetividade, reconhecendo o afeto como fundamento legítimo das relações parentais, independentemente do vínculo biológico. A proposta consolida o entendimento jurisprudencial do STF (RE 898.060/SC – Tema 622), que reconheceu a parentalidade socioafetiva como forma autônoma de filiação.
Com isso, admite-se formalmente a multiparentalidade, permitindo que uma pessoa tenha mais de dois pais ou mães, desde que reconhecidos os vínculos afetivos e jurídicos. A inovação confere segurança às estruturas familiares “não tradicionais”, como casais homoafetivos, famílias recompostas e relações de afeto estáveis entre padrastos, madrastas e enteados.
· Registro de Paternidade e DNA
O novo Código estabelece a possibilidade de registro imediato da paternidade caso o pai se recuse a fazer o exame de DNA, com base na declaração da mãe. Essa alteração tem o objetivo de simplificar o processo de reconhecimento da paternidade, principalmente nos casos em que o pai não colaboraria com o exame de paternidade, protegendo o direito da criança de ter seus pais reconhecidos legalmente.
· União Homoafetiva e Divórcio Unilateral
A reforma do Código Civil também busca legitimar e regulamentar as uniões homoafetivas já reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011. A proposta elimina as referências a “homem e mulher” quando se referir a casais ou famílias, promovendo uma linguagem mais inclusiva e permitindo que os casais homoafetivos usufruam de todos os direitos e deveres que os casais heterossexuais possuem no contexto familiar.
Outro ponto inovador da reforma é a possibilidade de divórcio unilateral, que permite que qualquer cônjuge ou convivente solicite a dissolução da união de maneira simples e sem a necessidade de uma ação judicial. O pedido poderá ser realizado diretamente em cartório, simplificando o processo e reduzindo a judicialização de questões familiares. Essa medida visa proporcionar maior autonomia às partes envolvidas, permitindo que possam resolver sua separação de maneira mais eficiente.
O projeto facilita o processo de divórcio, permitindo que uma das partes solicite a dissolução do casamento ou união estável diretamente em cartório, sem necessidade de ação judicial. Também propõe a possibilidade de alteração do regime de bens durante o casamento ou união estável por meio de escritura pública, dispensando autorização judicial.
· Ordem de Vocação Hereditária
O projeto propõe o reposicionamento do cônjuge sobrevivente na ordem de vocação hereditária, conferindo-lhe maior protagonismo sucessório, especialmente em relação aos descendentes. A proposta visa adequar o tratamento sucessório à realidade das famílias contemporâneas, nas quais o cônjuge muitas vezes constitui o principal elo afetivo e patrimonial da unidade familiar.
Esse movimento já vinha sendo sinalizado pela jurisprudência e pela doutrina, com destaque para os princípios da solidariedade familiar e da igualdade entre cônjuges e companheiros, conforme decidido pelo STF no julgamento do RE 878.694/MG (Tema 809).
· Testamentos e Planejamento Sucessório
A proposta amplia a liberdade do testador na destinação de seu patrimônio, permitindo maior espaço de atuação sobre a parte disponível e, eventualmente, alterações no regime da legítima. Tal mudança estimula o planejamento sucessório e confere maior autonomia à vontade do de cujus, respeitados os direitos dos herdeiros necessários.
Trata-se de tendência alinhada a modelos jurídicos europeus e ao princípio da eficiência na organização patrimonial pós-morte.
Em passo inédito, o projeto reconhece os animais como seres sencientes, ou seja, dotados de capacidade de sentir dor, emoções e sofrimento. Com isso, amplia-se o rol de sujeitos passíveis de tutela jurídica, ainda que não se lhes reconheça personalidade jurídica.
A proposta prevê a possibilidade de reparação por danos morais decorrentes de maus-tratos a animais, bem como a partilha de responsabilidades pela guarda e manutenção de animais de estimação em casos de dissolução da união. Essas disposições expressam o avanço do Direito Civil no sentido de reconhecer a intersubjetividade e a dignidade da vida não humana.
O Projeto de Lei nº 4/2025 promove inovações substanciais no Direito de Família e das Sucessões, ao incorporar à norma civil a realidade das famílias contemporâneas e os valores constitucionais de igualdade, liberdade e dignidade. A formalização da multiparentalidade, o reconhecimento da união homoafetiva, a desjudicialização do divórcio e a flexibilização sucessória refletem um Código mais humanizado e compatível com as transformações sociais.
Contudo, o êxito dessas reformas dependerá da atuação interpretativa sensível, bem como da clareza normativa na regulamentação de institutos ainda em evolução. A superação de conceitos tradicionais em prol de estruturas afetivas e patrimoniais mais complexas impõe aos operadores do Direito o compromisso com uma hermenêutica contemporânea, dialógica e comprometida com os direitos fundamentais.
Assim, a reforma representa não apenas uma atualização legislativa, mas a reafirmação de um Direito Civil comprometido com a centralidade da pessoa humana, em todas as suas formas de existência e convivência.