1. Introdução
A implementação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD - Lei nº 13.709/2018) trouxe à Administração Pública o desafio de conciliar transparência e privacidade nos processos licitatórios. Embora o princípio da publicidade assegure fiscalização e controle social, sua aplicação irrestrita pode expor dados sensíveis dos licitantes, comprometendo tanto a privacidade quanto a competitividade empresarial.
A Nova Lei de Licitações (Lei nº14.133/2021) reforça a exigência de transparência, mas prevê restrições para resguardar informações estratégicas. Para orientar essa adequação, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu o Parecer nº 00009/2022/DECOR/CGU/AGU, enquanto a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) publicou o Guia Orientativo sobre Tratamento de Dados Pessoais pelo Poder Público, estabelecendo diretrizes para evitar a exposição indevida de informações.
Este artigo analisa os limites da publicidade nos certames, destacando as medidas necessárias para assegurar segurança jurídica e eficiência administrativa. O objetivo não é eliminar a transparência, mas regulá-la para garantir a integridade das informações sem comprometer direitos fundamentais.
2. Princípio da Publicidade e suas Restrições na Administração Pública
A publicidade dos atos administrativos é essencial para garantir transparência e controle social, permitindo que a sociedade fiscalize as contratações públicas. No entanto, esse princípio não é absoluto e deve ser equilibrado com a proteção de dados pessoais e a segurança da informação.
A Constituição Federal (art. 37)estabelece que a Administração Pública deve obedecer ao princípio da publicidade, assegurando a ampla divulgação de seus atos. No entanto, o artigo 5º, inciso XXXIII, ressalva que o acesso às informações pode ser restringido quando necessário para resguardar a segurança da sociedade ou do Estado.
A Lei nº 14.133/2021 reafirma a transparência nos processos licitatórios, mas admite exceções. O artigo 13 determina que a publicidade dos atos é obrigatória, salvo quando o sigilo for imprescindível à segurança pública ou institucional. Assim, a Administração Pública deve modular a divulgação dos documentos licitatórios, assegurando o controle social sem expor desnecessariamente dados pessoais ou estratégias comerciais.
3. Tratamento de Dados Pessoais em Licitações
Os processos licitatórios envolvem o tratamento de diversos dados pessoais dos participantes, como nome, CPF e informações financeiras. A transparência das contratações é fundamental, mas não pode resultar na exposição indevida dessas informações.
3.1. Fundamento Legal para o Tratamento de Dados
O tratamento de dados pelo Poder Público deve ter respaldo legal e atender ao interesse público. A LGPD (art.7º, inciso II) autoriza esse tratamento quando necessário para cumprir obrigação legal, enquanto o artigo 23 reforça que o tratamento deve atender à finalidade pública, sempre em conformidade com os princípios da necessidade e proporcionalidade.
Além disso, a norma exige que órgãos públicos nomeiem um Encarregado pelo Tratamento de Dados e limitem o compartilhamento de informações com entidades privadas, salvo quando houver previsão legal específica.
3.2. O Papel do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP)
A digitalização trouxe desafios adicionais à proteção de dados, pois as informações licitatórias são amplamente divulgadas em plataformas eletrônicas. O PNCP centraliza a publicidade dos atos administrativos, mas deve seguir as diretrizes da LGPD, garantindo que:
O próprio termo de uso do PNCP reforça a necessidade de respeitar os princípios da necessidade e proporcionalidade na divulgação dos dados.
3.3. Medidas para Proteger Dados Pessoais em Licitações
Para minimizar riscos e garantir conformidade com a LGPD, a Administração deve adotar medidas como:
O equilíbrio entre publicidade e proteção de dados assegura a lisura dos processos licitatórios sem comprometer direitos fundamentais.
4. Análise do Parecer nº00009/2022/DECOR/CGU/AGU
A aplicação da LGPD nas licitações públicas exige que a Administração equilibre a publicidade dos atos administrativos com a proteção dos dados pessoais dos participantes. Para orientar esse processo, a AGU emitiu o Parecer nº 00009/2022/DECOR/CGU/AGU, que estabelece diretrizes para garantir transparência sem comprometer a privacidade. O documento reforça que, embora a publicidade seja essencial para a fiscalização das contratações, sua aplicação não pode ser irrestrita, sob pena de expor dados sensíveis ou desnecessários.
4.1. Publicidade e Proteção de Dados: O Equilíbrio Necessário
O parecer esclarece que não há conflito absoluto entre publicidade e proteção de dados, pois a legislação já prevê mecanismos para harmonizá-los. O artigo 6º da LGPD estabelece princípios fundamentais para o tratamento de informações pessoais, como:
A AGU destaca que a publicidade não pode justificar a exposição indiscriminada de dados pessoais. A Administração deve aplicar critérios de necessidade e proporcionalidade, garantindo que apenas informações essenciais sejam divulgadas.
4.2. Diretrizes da AGU para Proteção de Dados em Licitações
O parecer recomenda medidas para assegurar conformidade com a LGPD sem comprometer a transparência, como:
4.3. O Papel da ANPD na Fiscalização do Setor Público
A ANPD tem competência para fiscalizar a aplicação da LGPD nos órgãos públicos e pode impor penalidades, como advertências, multas e até a suspensão do tratamento de dados. O parecer alerta que a Administração deve seguir as diretrizes da ANPD para evitar passivos administrativos. Caso dados pessoais sejam divulgados sem respaldo legal, a ANPD pode determinar sua remoção imediata e aplicar sanções.
O Parecer nº00009/2022/DECOR/CGU/AGU estabelece parâmetros claros para que a publicidade dos certames não comprometa a privacidade dos envolvidos, garantindo segurança jurídica e um ambiente licitatório mais transparente e eficiente.
5. Publicação de Documentos nos Sites dos Órgãos Públicos
A digitalização dos processos licitatórios ampliou a transparência na Administração Pública, mas essa acessibilidade exige equilíbrio entre publicidade e proteção de dados, garantindo que a transparência não resulte na exposição indevida de informações pessoais e estratégicas.
A legislação permite diferenciar informações que devem ser divulgadas daquelas que necessitam de restrição. Devem ser publicados editais, avisos de contratação, resultados dos certames, contratos firmados e atas de sessões públicas, desde que eventuais dados pessoais irrelevantes para a transparência sejam anonimizados.
Por outro lado, CPFs, endereços, contatos de representantes das empresas e informações financeiras detalhadas não devem ser divulgados, pois comprometem a segurança dos licitantes. Informações estratégicas, como segredos industriais e estratégias comerciais, também devem ser protegidas para preservar a competitividade dos certames.
6. Medidas de Segurança e Governança
A conformidade com a LGPD exige mais do que políticas formais de proteção de dados. Para garantir transparência sem comprometer direitos fundamentais, a Administração Pública deve adotar medidas ativas de segurança da informação e governança de dados.
6.1. Segurança da Informação na Administração Pública
A LGPD (art. 46) impõe que órgãos públicos adotem medidas técnicas e administrativas para evitar acessos não autorizados e exposição indevida de dados pessoais. Para garantir essa proteção, é essencial:
6.2. Protocolos para Compartilhamento de Dados
O compartilhamento de dados entre órgãos públicos ou com terceiros deve obedecer a critérios rigorosos. O artigo 26 da LGPD determina que a transmissão de dados deve ter finalidade específica e ser informada aos titulares, salvo exceções previstas na lei.
Caso seja necessário compartilhar informações com empresas terceirizadas, o contrato deve incluir cláusulas de proteção de dados, assegurando que os prestadores adotem as exigências da LGPD.
7. Conclusão
A implementação da LGPD nas licitações públicas é um avanço necessário para equilibrar transparência e privacidade, mas ainda enfrenta desafios operacionais. A publicidade dos atos administrativos, essencial para fiscalização e controle social, não pode resultar na exposição irrestrita de dados pessoais dos licitantes. A transparência deve ser aplicada de forma estruturada, garantindo acesso às informações essenciais sem comprometer direitos fundamentais.
A harmonização entre a LGPD e a Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) ainda gera insegurança jurídica para gestores públicos. O excesso de divulgação pode levar a sanções da ANPD, enquanto a restrição indevida pode prejudicar a fiscalização e abrir espaço para irregularidades. O equilíbrio exige anonimização de dados, revisão criteriosa de documentos e auditorias frequentes, assegurando que apenas informações estritamente necessárias sejam publicadas.
Mais do que um desafio técnico, a adequação à LGPD requer mudança cultural na Administração Pública. A adoção de governança de dados, capacitação contínua dos servidores e criação de normativos internos é essencial para reduzir riscos e consolidar um ambiente institucional seguro e transparente. O futuro da gestão pública dependerá desse equilíbrio, no qual a proteção de dados será um pilar indispensável da eficiência e credibilidade do setor público.
Referências
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ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO (AGU).Parecer nº 00009/2022/DECOR/CGU/AGU. Dispõe sobre a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados no âmbito da Administração Pública e sua relação com a publicidade dos atos administrativos. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br.
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