Um modelo que beneficia a todos: garante agilidade para a Administração, segurança para fornecedores e legitimidade jurídica para agências licitadas.
Introdução: O Desafio da Eficiência na Comunicação Pública
A comunicação eficaz é vital para a Administração Pública moderna. Seja para informar sobre políticas essenciais, prestar contas à sociedade ou promover serviços de empresas estatais, a necessidade de alcançar o cidadão de forma clara e impactante é inegável. Contudo, o universo da comunicação atual é vasto e complexo, abrangendo desde a publicidade tradicional até o dinâmico live marketing, a onipresente comunicação digital e as estratégicas relações públicas, gerando um desafio prático e jurídico para os gestores: como contratar e gerenciar a miríade de serviços especializados necessários?
A solução natural é a contratação, via licitação, de agências especializadas, pois manter equipes internas para todas essas atuações é inviável. No entanto, a mera contratação da agência não resolve todo o problema. A execução de qualquer campanha ou evento significativo demanda uma vasta rede de fornecedores terceirizados, veículos de mídia, produtoras, gráficas, empresas de eventos, plataformas digitais. Como administrar essa teia de relações contratuais sem afogar a máquina pública em burocracia, celebrando contratos individuais com cada um?
A resposta reside em um modelo jurídico específico e eficiente, mas nem sempre plenamente compreendido: a atuação "por conta e ordem". Este artigo explora os fundamentos, a legalidade e a importância desse regime, não apenas no âmbito já consolidado da publicidade, mas também sua necessária e defensável extensão, por analogia, para outras áreas cruciais da comunicação governamental, como o live marketing, a comunicação digital e institucional, oferecendo um caminho para maior segurança jurídica e eficiência na gestão pública.
Cenário Prático: Por Que a Atuação "Por Conta e Ordem" é Indispensável?
Imagine a cena: um grande banco estatal, gigante financeiro com milhares de funcionários e clientes, precisa lançar um novo produto de crédito agrícola. A missão é clara: comunicar os benefícios a produtores rurais em todo o país, utilizando TV, rádio, anúncios online, eventos em feiras agropecuárias e conteúdo especializado em redes sociais. A estratégia de comunicação é complexa e exige múltiplos talentos: criação publicitária, produção audiovisual, planejamento de mídia, organização de eventos, marketing digital.
O banco, cujo core business é financeiro, não possui, nem faria sentido possuir, equipes internas para cada uma dessas especialidades. A solução óbvia e legal é licitar e contratar agências especializadas: uma de publicidade, outra de live marketing, talvez uma focada no digital.
Mas aqui começa o verdadeiro desafio administrativo e jurídico. A agência de publicidade precisa contratar produtoras e veículos de mídia. A de live marketing necessita de montadoras de estandes, recepcionistas, buffets, equipamentos. A digital, de plataformas de anúncio e influenciadores. Se o banco, como contratante final, tivesse que firmar um contrato de prestação de serviços individual com cada um desses fornecedores, centenas deles, para uma única campanha, a máquina pública se engasgaria. A agilidade, essencial na comunicação, seria engolida pela burocracia, tornando a própria contratação das agências quase inócua.
É para solucionar este impasse que existe o regime de atuação "por conta e ordem". Um modelo onde a agência contratada funciona como um braço executor da Administração, autorizada a contratar terceiros em nome e às expensas do órgão público. A agência age sob as diretrizes do contratante (a "ordem") e a responsabilidade financeira final é dele (a "conta"). Ela se torna uma intermediária qualificada, essencial para a eficiência da comunicação pública.
A Base Legal na Publicidade: Um Modelo Estabelecido
A atuação "por conta e ordem" não é invenção recente ou mera prática de mercado no setor publicitário. Ela possui raízes legais profundas. A Lei nº 4.680/1965, que regulamenta a profissão de publicitário, já definia em seu artigo 3º a agência como entidade que executa e distribui propaganda "por ordem e conta de clientes anunciantes".
Art 3º A Agência de Propaganda é pessoa jurídica, ... VETADO ..., e especializada na arte e técnica publicitária, que, através de especialistas, estuda, concebe, executa e distribui propaganda aos veículos de divulgação, por ordem e conta de clientes anunciantes, com o objetivo de promover a venda de produtos e serviços, difundir idéias ou informar o público a respeito de organizações ou instituições colocadas a serviço dêsse mesmo público.
Essa natureza intermediária foi expressamente incorporada pela Lei nº 12.232/2010, que normatiza as licitações de publicidade pela Administração Pública. Seu artigo 4º, § 2º, é taxativo:
Art. 4º Os serviços de publicidade previstos nesta Lei serão contratados em agências de propaganda cujas atividades sejam disciplinadas pela Lei no 4.680, de 18 de junho de 1965, e que tenham obtido certificado de qualificação técnica de funcionamento.
§ 2º A agência contratada nos termos desta Lei só poderá reservar e comprar espaço ou tempo publicitário de veículos de divulgação, por conta e por ordem dos seus clientes, se previamente os identificar e tiver sido por eles expressamente autorizada.
Essa estrutura legal diferencia a atuação da agência da subcontratação comum (prevista no Art. 122 da Nova Lei de Licitações, Lei nº 14.133/2021).
Art. 122. Na execução do contrato e sem prejuízo das responsabilidades contratuais e legais, o contratado poderá subcontratar partes da obra, do serviço ou do fornecimento até o limite autorizado, em cada caso, pela Administração.
Na subcontratação, o contratado principal repassa parte da execução, mas mantém a relação direta e a responsabilidade integral perante a Administração. No regime "por conta e ordem", a agência age como mandatária do órgão público na relação com terceiros específicos (como veículos de mídia), o que confere legitimidade e segurança à contratação do fornecedor final.
Isso se reflete em regras específicas, como a do Decreto nº 57.690/1966 (Art. 15), que determina o faturamento da divulgação pelo veículo em nome do anunciante, e na interpretação do Tribunal de Contas da União (TCU). No Acórdão 699/2022-Plenário, o TCU esclareceu que, para serviços especializados complementares (pesquisas, produção, etc.), a nota fiscal do fornecedor pode ser emitida diretamente em nome do órgão público contratante:
Acórdão 699/2022-Plenário:
9.2. esclarecer ao Consulente que as notas fiscais dos fornecedores dos serviços especializados identificados no §1º do art. 2º da Lei 12.232/2010 podem ser emitidas diretamente em nome do órgão público contratante, à semelhança do que ocorre com os serviços de divulgação [...].
Essa permissão beneficia o fornecedor ao alinhar a documentação fiscal à realidade econômica (evitando bitributação sobre a agência intermediária) e ao reconhecer formalmente o órgão público como destinatário final do serviço.
Além da Publicidade: A Necessidade da Analogia para Eficiência e Segurança
Se a publicidade tem seu regime claro, o mesmo não ocorre com outras áreas vitais e igualmente complexas da comunicação, como live marketing, digital e institucional. A ausência de lei específica que preveja o "conta e ordem" para essas disciplinas gera incerteza, confusão e, por vezes, até mesmo ineficiência.
É aqui que a analogia, ferramenta de integração normativa prevista no Art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), torna-se essencial:
Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Este dispositivo autoriza expressamente o uso da analogia como método de preenchimento de lacunas normativas, sendo plenamente aplicável à Administração Pública.
Aplicar o regime da publicidade por analogia a essas outras áreas é juridicamente defensável e administrativamente recomendável pelos seguintes motivos:
Evolução Legislativa Recente: Ampliação do Escopo da Comunicação Governamental
A evolução legislativa recente reforça a tendência de ampliação do escopo da comunicação governamental para além da publicidade tradicional. A Lei nº 14.356/2022, ao alterar a Lei nº 12.232/2010, incluiu expressamente os serviços de comunicação institucional em seu âmbito, adicionando os artigos 20-A e 20-B:
Art. 20-A. A contratação de serviços de comunicação institucional, que compreendem os serviços de relação com a imprensa e de relações públicas, deverá observar o disposto no art. 5º desta Lei.
§ 1º Aplica-se o disposto no caput deste artigo à contratação dos serviços direcionados ao planejamento, criação, programação e manutenção de páginas eletrônicas da administração pública, ao monitoramento e gestão de suas redes sociais e à otimização de páginas e canais digitais para mecanismos de buscas e produção de mensagens, infográficos, painéis interativos e conteúdo institucional.
Mais recentemente, o Decreto nº 12.065/2024, ao alterar o Decreto nº 6.555/2008, reconheceu expressamente o "live marketing" como parte integrante da comunicação institucional governamental:
Art. 3º As ações de comunicação do Poder Executivo Federal compreendem as áreas de:
[...]
VI - comunicação institucional:
[...]
b) relações públicas:
[...]
3. live marketing.
Essa evolução normativa demonstra claramente a tendência de ampliação e especialização das áreas de comunicação governamental, reforçando a necessidade de aplicação analógica do regime "por conta e ordem" para garantir eficiência e segurança jurídica em todas essas áreas.
Fundamentos Jurisprudenciais: O Acórdão 6227/2016-TCU-2ª Câmara
O Tribunal de Contas da União já se manifestou favoravelmente à aplicação analógica de dispositivos da Lei nº 12.232/2010 para outras áreas da comunicação. No Acórdão 6227/2016-TCU-2ª Câmara, ao analisar a contratação de serviços de comunicação digital pela Agência Nacional de Águas, o TCU reconheceu a aplicação, por analogia, do art. 5º da Lei 12.232/2010 para essas contratações.
Nesse acórdão, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (SECOM/PR) defendeu expressamente a aplicação analógica da Lei 12.232/2010 para serviços de comunicação digital:
O Secretário-Executivo da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República apresentou as informações solicitadas na oitiva determinada pelo TCU, por meio da Not a Técnica 7/2016/DENOR/SGCN/SECOM-PR, datada de 29/2/2016 (peça 32, p. 2-22). (Item 21 do Relatório do Acórdão 6227/2016-TCU-2ª Câmara)
Defende a aplicação, por analogia, do art. 5º da Lei 12.232/2010, que determina a utilização dos tipos 'melhor técnica' e 'técnica e preço' para as contratações de serviços de publicidade, alegando a semelhança entre os serviços de comunicação digital e as ações publicitárias." (Item 33 do Relatório do Acórdão 6227/2016-TCU-2ª Câmara)
A SECOM/PR fundamentou sua posição na semelhança entre os serviços:
Conforme explicitado pela Secom, verifica-se que os serviços de comunicação digital se assemelham em diversos pontos com os serviços de publicidade, notadamente quanto à existência, nas duas modalidades, de planejamento, criação e confecção de material, bem como da escolha do veículo para divulgação da mensagem. (Item 45 do Relatório do Acórdão 6227/2016-TCU-2ª Câmara)
O TCU, por sua vez, reconheceu a validade dessa aplicação analógica:
Tendo, portanto, como razoável a premissa de que os serviços de comunicação digital se assemelham aos serviços de publicidade e propaganda, e a de que a predominância do caráter intelectual e criativo na execução dessas atividades afasta o seu enquadramento na definição de serviços comuns estabelecida pela lei, mostra-se razoável a conclusão de que a modalidade de licitação a ser utilizada na contratação dos aludidos serviços de comunicação digital deve guardar correspondência com a modalidade de licitação utilizada para as contratações dos serviços de publicidade e propaganda, de sorte que a adoção de concorrência, no tipo melhor técnica, pode ser vista como regular. (Item 17 da Proposta de Deliberação do Acórdão 6227/2016-TCU-2ª Câmara)
Esse entendimento foi formalizado no próprio Acórdão, que recomendou à SECOM/PR:
9.2. recomendar, nos termos do art. 250, III, do Regimento Interno do TCU (RITCU), à Secretaria de Comunicação da Presidência da República que avalie a possibilidade de adoção de boas práticas, a exemplo daquelas previstas na Lei nº 12.232, de 29 de abril de 2010 (não identificação das propostas técnicas e o emprego de subcomissão técnica composta por membros sorteados e instituída exclusivamente para avaliar as propostas técnicas), para os processos de contratação de serviços de comunicação digital... (Item 9.2 do Acórdão 6227/2016-TCU-2ª Câmara)
A mesma lógica que justifica a aplicação analógica das regras de licitação da Lei 12.232/2010 para comunicação digital também sustenta a aplicação analógica do regime "por conta e ordem" para live marketing e comunicação institucional, que apresentam complexidade e variabilidade semelhantes.
Benefícios Práticos e Econômicos da Aplicação Analógica
A aplicação do regime "por conta e ordem" para todas as áreas de comunicação traz benefícios concretos:
Limites e Requisitos para a Aplicação Analógica
A aplicação analógica do regime "por conta e ordem" para outras áreas da comunicação deve observar alguns limites e requisitos:
A Formalização da Parceria: O Contrato como Mandato
A segurança jurídica para a atuação "por conta e ordem", tanto para a Administração quanto para a agência e seus fornecedores, é estabelecida de forma clara e direta. A autorização para que a agência contrate terceiros em nome do órgão público consta expressamente no próprio contrato administrativo celebrado entre a Administração e a agência, ou em termo aditivo específico.
Este instrumento contratual, ao prever essa modalidade de atuação, funciona como um verdadeiro mandato, conferindo à agência os poderes necessários para representar o órgão público perante os fornecedores definidos no escopo do serviço. Desta forma, torna-se desnecessária a emissão de procurações ou documentos apartados, simplificando a relação e garantindo que a legitimidade da agência para agir "por conta e ordem" esteja inequivocamente documentada no vínculo principal estabelecido com a Administração Pública.
Conclusão: Eficiência e Legalidade na Comunicação Pública
A atuação "por conta e ordem" é mais que uma conveniência; é um mecanismo jurídico essencial para a comunicação pública eficaz e eficiente. Sua aplicação analógica para além da publicidade é defensável e necessária, encontrando respaldo na evolução legislativa recente, na jurisprudência do TCU e na prática administrativa consolidada.
A chave para sua implementação segura reside na combinação de uma interpretação jurídica sólida e, fundamentalmente, na formalização contratual clara e objetiva. Ao prever o regime no edital e no contrato, conferindo clareza sobre papéis e a representação conferida à agência, gestores públicos, agências e fornecedores podem operar com segurança e confiança mútua.
A atuação "por conta e ordem", bem compreendida e implementada, é a ponte que une a necessidade de comunicar com a obrigação de gerir os recursos públicos com responsabilidade, eficiência e total conformidade legal.
Referências