INTRODUÇÃO
O Código Civil de 2002, considerado a “constituição do cidadão comum”, regula aspectos essenciais da vida em sociedade, desde antes do nascimento até após a morte, incluindo casamento, herança, contratos e atividades empresariais. Em 10 de janeiro de 2025, a legislação civil completou 23 anos, período no qual a sociedade passou por profundas transformações econômicas, sociais e tecnológicas. Diante desse cenário dinâmico, a necessidade de uma revisão substancial do Código tornou-se evidente, a fim de garantir que o ordenamento jurídico continue eficaz, coerente e alinhado com a realidade contemporânea e futura.
A fim de debater as mudanças necessárias, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, instituiu uma Comissão de Juristas, sob a presidência do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luís Felipe Salomão. Após oito meses de trabalho, o grupo concluiu, em abril de 2024, o anteprojeto de atualização do Código Civil, que resultou no Projeto de Lei nº 4/2025, protocolado em 31 de janeiro de 2025. A proposta prevê alterações em 1.122 artigos do Código e impacta ainda dez importantes leis federais, como o Código de Processo Civil, a Lei de Registros Públicos, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Penal.
Conforme elucidou o ministro Salomão[1],as principais diretrizes da reforma incluem maior autonomia da vontade, desjudicialização de procedimentos, estímulo ao empreendedorismo e segurança jurídica. Ademais, o professor Flávio Tartuce, relator da proposta na Comissão de Juristas, reforça que não se trata de um novo Código Civil, mas de uma ampla reforma para adequar o Direito Civil aos desafios do século XXI.
As modificações sugeridas abrangem temas como expansão do conceito de família, novas regras sobre herança, mudanças nos contratos, proteção aos direitos digitais, regulamentação da inteligência artificial e maior proteção aos animais. Dada a profundidade dessas alterações, o debate sobre a pertinência da reforma tem gerado intensos diálogos no meio acadêmico e legislativo.
O presente artigo cinge-se a realizar um panorama geral acerca das principais mudanças propostas, com análise específica das inovações, destacando seus reflexos jurídicos e os desafios de sua implementação.
DIREITO DIGITAL
Reconhecendo a relevância das relações jurídicas no ambiente digital, o projeto da reforma criou um livro específico que trata do Direito Civil Digital (Livro VI) no Código Civil de2002 (arts. 2.027-A a 2.027-CH), sistematizando normas sobre a personalidade digital, a responsabilidade por danos no ambiente virtual, a assinatura eletrônica, os atos notariais digitais e o uso de inteligência artificial.
A criação de um microssistema voltado às relações jurídicas digitais revela a tentativa de conferir segurança jurídica e previsibilidade, valorizando os princípios da boa-fé, da autonomia da vontade e da proteção da dignidade da pessoa humana em sua dimensão digital. Dentre as novidades, sobreleva-se:
· Proteção no Ambiente Virtual
Com o crescente impacto das tecnologias no cotidiano da sociedade, o projeto de reforma do Código Civil inclui normas específicas sobre direitos e obrigações no ambiente digital.
Isso inclui a proteção da privacidade digital, criando direitos e deveres para as plataformas digitais, como a obrigação de remover conteúdos ofensivos, como imagens íntimas, pornografia falsa e conteúdo envolvendo crianças e adolescentes.
Além disso, o projeto introduz a possibilidade de indenizações por danos sofridos em ambientes virtuais, o que se aplica tanto aos casos de violação de dados quanto a questões mais complexas que envolvem danos à imagem e honra das pessoas no ambiente online.
· Patrimônio e Herança Digital
Entre os pontos mais relevantes está a positivação do conceito de patrimônio digital, compreendendo ativos como criptomoedas, milhas aéreas, contas em plataformas, conteúdos audiovisuais e perfis em redes sociais. A transmissibilidade desses bens aos herdeiros representa um avanço, especialmente por dar concretude a entendimentos já consagrados na jurisprudência do STJ.
A proposta também reconhece a possibilidade de disposição testamentária sobre tais ativos e permite que os herdeiros solicitem a exclusão de perfis ou sua transformação em memorial digital — o que representa importante passo no reconhecimento da identidade digital post mortem.
· Identidade e Assinatura Digitais
Merece destaque, ainda, a proposta de regulamentação pelo projeto em questão da utilização de assinatura eletrônica, bem como o reconhecimento positivado da identidade digital como forma oficial de identificação civil, acompanhando o avanço da digitalização documental no Brasil (como o e-Título e a CNH digital), em consonância com o que já vem acontecendo com o processo contínuo de digitalização dos documentos.
· Inteligência Artificial
O projeto da reforma, ainda, visa a regulamentar a utilização de inteligência artificial (IA), dispondo que sua utilização para criação de imagens de pessoas vivas ou falecidas só poderá ocorrer com autorização prévia. O projeto também exige a identificação clara quanto à utilização de IA, estabelecendo a transparência como princípio fundamental para a utilização dessas tecnologias, protegendo, por via de consequência, direitos individuais.
· Responsabilidade das Plataformas Digitais
A proteção da privacidade no meio digital é abordada de maneira mais explícita. A proposta atribui deveres específicos às plataformas digitais, inclusive a obrigação de remoção de conteúdos ofensivos (como pornografia de vingança, deep fakes ou exposição de crianças) mediante notificação. Essa medida visa proteger os direitos dos usuários e terceiros, promovendo um ambiente digital mais seguro.
A responsabilidade civil, nesses casos, poderá ser objetiva, nos moldes do art. 927, parágrafo único. Notadamente, propõe-se a revogação do art. 19 do Marco Civil da Internet – que isenta as plataformas digitais de responsabilização por conteúdos publicados por terceiros, exceto nos casos de descumprimento de decisão judicial –, cuja constitucionalidade está em discussão no Supremo Tribunal Federal, substituindo-o por um regime de responsabilidade que exige atuação diligente das plataformas após ciência do ilícito.
· Direito ao Esquecimento e à Desindexação
O PL dispõe que “a pessoa pode requerer a exclusão permanente de dados ou de informações a ela referentes, que representem lesão aos seus direitos fundamentais ou de personalidade, diretamente no site de origem em que foi publicado”, com base em alguns requisitos.
O direito ao esquecimento é a ideia de impedir a divulgação de informações consideradas irrelevantes ou desatualizadas sobre uma pessoa. Quando aplicado à internet, isso significa remover tais conteúdos dos seus sites de origem.
Quanto a esse ponto, há um receio de desrespeito à decisão de repercussão geral do STF que considerou esse conceito incompatível com a Constituição. Tal interpretação não é unânime, todavia, mesmo na opinião dos juristas que afirmam não vislumbrarem conflito com o acórdão do STF e aprova a ideia, alcançam a conclusão de que o texto proposto possui imprecisões.
O texto também contempla o direito à desindexação, definido como a remoção de links de acesso por mecanismos de busca a conteúdos considerados inadequados, irrelevantes, abusivos ou excessivamente prejudiciais ao requerente, sem que haja, contudo, exclusão do conteúdo do site de origem. A norma admite um rol exemplificativo das hipóteses em que essa medida poderá ser requerida, incluindo: imagens pessoais íntimas ou explícitas, conteúdos de “pornografia involuntária”, dados pessoais sensíveis e imagens envolvendo crianças e adolescentes.
O principal desafio da aplicação desse dispositivo reside na amplitude e vagueza de sua redação, especialmente no caput, o que exigirá do Poder Judiciário uma ponderação criteriosa entre os direitos fundamentais envolvidos, notadamente os direitos da personalidade versus a liberdade de expressão e de informação.
· Extensão aos Contratos
Sobreleva-se, por fim, que, no que tange ao direito digital, para além do livro de Direito Civil Digital, pretendeu-se dar respaldo jurídico, inclusive, aos smart contracts (contratos inteligentes), aos contratos de prestação de serviços e de acesso a conteúdos digitais, bem como aos meios de interação digital (arts. 428, § 1º;435-A; 609-A a 609-G; 744; 759; 785; e 817-A).
CONCLUSÃO
O Projeto de Lei nº 4/2025, ao introduzir um Livro dedicado ao Direito Civil Digital, representa um marco importante na tentativa de normatizar as complexas relações jurídicas surgidas no contexto da sociedade informacional. A positivação de conceitos como patrimônio digital, identidade digital, responsabilidade civil de plataformas e regulação da inteligência artificial demonstra sensibilidade do legislador às novas demandas sociais.
Contudo, a despeito do esforço legislativo ser louvável, persistem desafios relevantes, como a compatibilização com a jurisprudência pátria (a exemplo do direito ao esquecimento), a operacionalização da responsabilização das plataformas, e a efetiva harmonização com outras normas setoriais (como a LGPD e o Marco Civil da Internet).
Assim, a proposta revela-se promissora, todavia, demanda debate técnico contínuo, diálogo com a doutrina especializada e atenção à realidade prática da aplicação jurídica no meio digital. A construção de um Direito Civil verdadeiramente digital dependerá não apenas da letra da lei, mas da forma como será interpretada e aplicada pelos operadores do Direito.
[1] https://www.migalhas.com.br/coluna/reforma-do-codigo-civil/422645/o-anteprojeto-de-atualizacao-do-codigo-civil-no-brasil