O marketing de influência não é recente. Apesar de ter mais ênfase na sociedade atual, ainda no século XIX suas diretrizes já tinham sido traçadas, quando algumas marcas americanas passaram a contratar nomes já conhecidos para endossá-las[1],afinal, desde sempre se pressupôs uma relação de confiança entre o influenciador e o seu público.
Segundo a pesquisa Future Consumer Index (FCI), cujo resultado foi divulgado pela EY-Parthenon para a revista Exame em outubro de 2024, 78% (setenta e oito por cento) dos entrevistados no Brasil consideram confiáveis as recomendações dadas pelos criadores de conteúdo (4% a mais do que o nível de confiança global)[2].
Pensando no Brasil como o país de relações sociais, esse dado faz muito sentido. Segundo Willian Valiante, sócio de consultoria para Varejo na EY América Latina, “O brasileiro tem um perfil muito social e é historicamente adepto a plataformas digitais desde que essas chegaram ao país. As primeiras redes já registraram números expressivos por aqui, e a atualidade reflete esse comportamento, favorecendo o sucesso dos influenciadores”.
O brasileiro, então, é um ser sociável e próximo dos demais ao ponto de questionar quem conhece e confia para saber se pode investir seu dinheiro em algo, para decidir se compra o produto ‘x’ ou o ‘y’.
Considerando, então, que escolhem os influenciadores que seguem com base na “qualidade do conteúdo, caráter divertido e identificação pessoal”[3],percebe-se que os brasileiros desenvolvem um vínculo com aqueles criadores que admiram, vínculo esse que pressupõe confiança.
Essa relação de confiança, por sua vez, ao mesmo tempo que é o segredo do sucesso desses influenciadores, é, também, o maior risco do negócio.
Acontece que alguns criadores de conteúdo não demonstram ter responsabilidade com aquilo que escolhem compartilhar, de modo que acabam por influenciar seus seguidores a um nível de consumo que não é saudável, incluindo a aquisição de produtos de natureza duvidosa ou o investimento de dinheiro em armadilhas financeiras.
As nuances do tema são mais profundas do que parecem. Transitamos desde um cenário de liberdade de expressão, prevista na Constituição Federal e no Marco Civil da Internet, até a responsabilização por publicidade enganosa, prevista pelo Código de Defesa do Consumidor.
Por isso e com o intuito de regulamentar esse tipo de publicidade, o Conar lançou, em 2021, um “Guia de Publicidade por Influenciadores Digitais”, no qual define que a publicidade por influenciador é: “considerada para a autorregulamentação publicitaria a mensagem de terceiro destinada a estimular o consumo de bens e/ou serviços, realizada pelos chamados Influenciadores Digitais, a partir de contratação pelo Anunciante e/ou agência”[4]. Elencam-se, então, três elementos cumulativos necessários para a caracterização da referida publicidade, quais sejam:
I. A divulgação de produto, serviço, causa ou outro sinal a eles associado;
II. A compensação ou relação comercial, ainda que não financeira, com Anunciante e/ou Agência; e
III. A ingerência por parte do Anunciante e/ou Agência sobre o conteúdo da mensagem (controle editorial na postagem do influenciador)[5].
O mesmo guia informa que o Anunciante e a Agência devem envidar “os maiores esforços” e adotar as melhores práticas para informar o influenciador contratado sobre os cuidados que devem acompanhar a publicação que será feita. Além disso, determina-se que o influenciador fica incumbido do “conhecimento e conformidade com as normas aplicáveis, em especial que o seu depoimento, ao retratar uma experiencia pessoal, seja genuíno e contenha apresentação verdadeira do produto ou serviço anunciado”.
A diretriz que estrutura o referido guia é o princípio da transparência, que, nas palavras do Conar, deve pautar as relações. Por esse motivo, o documento ainda traz um rol de expressões recomendadas, que devem acompanhar esse tipo de publicidade, como: #publicidade #anúncio #patrocinado #conteúdopago #parceriapaga, e assim por diante.
Veja-se, então, que as determinações do Conar possuem até um viés ético, mas os efeitos são limitados, já que o Conselho não possui poder de polícia, o que significa que não pode multar ou aplicar sanções coercitivas.
A Constituição Federal, por sua vez, elenca, como direito e garantia fundamental aos cidadãos a livre manifestação do pensamento (inciso IV do artigo 5º) e diz ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (inciso IX do mesmo artigo).
Somado a isso, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14), dispõe em seu artigo 3º, inciso I, que o uso da internet no Brasil tem como princípio a garantia da liberdade de expressão. Contudo, esse princípio está atrelado a outro elencado no mesmo artigo, em seu inciso VI, que diz respeito à responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades e, ainda, propõe a liberdade dos modelos de negócio promovidos na internet, “desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei” (inciso VIII).
O artigo 8º da legislação retromencionada, por sua vez, dispõe que “A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet”.
Ocorre, contudo, que é importante frisar que a liberdade de expressão não é um princípio absoluto, o que significa dizer que essa liberdade não está acima de tudo e de todos, de modo que não se isenta de observar limites importantes.
Nesse sentido, é necessário mencionar o Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, que foi incorporado no direito brasileiro através do Decreto nº 678/92, de modo que o referido tratado internacional passou a fazer parte do nosso ordenamento jurídico e, com isso, deve ser respeitado.
O Pacto em questão menciona, em seu artigo 13, item 1, que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. No entanto, o item subsequente já determina que:
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
Veja-se, então, que a liberdade existe, mas as pessoas devem ser responsabilizadas pelo conteúdo de suas falas e manifestações, uma vez que devem ser protegidas a segurança nacional, a ordem pública, os direitos e reputações das demais pessoas, além da saúde e da moral pública.
E não para por aí. O item 5 do mesmo artigo determina que a lei deve proibir “toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.
Assim, fica muito claro que, em que pese a liberdade de expressão seja um direito/garantia fundamental de extrema importância, não deve ser exercida de forma indiscriminada, sob pena de responsabilização.
Somado a isso, o Código de Defesa do Consumidor – CDC determina, em seu artigo 6º, inciso III, que é um direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.
Perceba-se, então, que o sistema jurídico brasileiro é robusto e a interpretação das normas deve acontecer de forma macro, sistemática, pois, do contrário, facilmente incorreríamos no desrespeito aos diversos direitos e deveres da população civil.
Nesse contexto, a jurisprudência tem se desenvolvido no sentido de condenar influenciadores, a depender dos casos fáticos que se apresentam.
Caso recente que passou pela análise da 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais ensejou na condenação de um influenciador digital a indenizar uma farmácia de manipulação por danos morais[6]. Vide ementa, que traz à tona informações importantes:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - LIBERDADE DE EXPRESSÃO - LIMITES CONSTITUCIONAIS - CONTRATO COM CLÁUSULA DE CONFIDENCIALIDADE -DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL VERIFICADO - DIVULGAÇÃO DE MENSAGENS DEPRECIATIVASÀ IMAGEM DE PESSOA JURÍDICA EM REDE SOCIAL - "INFLUENCER DIGITAL" - GRANDE ALCANCE - DANO MORAL À PESSOA JURÍDICA COMPROVADO - SENTENÇA REFORMADA.
- Os fundamentos político-filosóficos do direito fundamental de liberdade de expressão lhe asseguram uma posição preferencial sobre os demais direitos constitucionais nas eventuais hipóteses de colisão.
- O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, reconheceu que as liberdades de comunicação formam bloco dos direitos da personalidade que possui precedência sobre aqueles relativos à imagem, à honra, à intimidade e à vida privada.
- É possível a limitação do direito à liberdade de expressão por meio da celebração de contrato com cláusula de confidencialidade. O descumprimento do contrato, por meio da divulgação de mensagens sobre seu teor em redes sociais de influencer de grande alcance é apto a ensejar danos morais por ofensa à imagem de pessoa jurídica.
- A pessoa jurídica pode sofrer dano moral, desde que demonstrada violação à sua honra objetiva.
- O dano moral experimentado pela pessoa jurídica possui contornos distintos daqueles que afetam as pessoas físicas. A análise a ser realizada nessa hipótese diz respeito à violação à honra objetiva, consistente na demonstração de que sua imagem, reputação e nome perante o mercado foram violados pelo ato lesivo.
- Evidenciado o abalo à imagem da empresa autora, impõe-se a reforma da sentença para condenar o réu ao pagamento de indenização por danos morais.
- Recurso provido.
APELAÇÃO CÍVEL No 1.0000.24.213871-7/001 - COMARCA DE CONTAGEM - APELANTE(S): NS FARMACIA DE MANIPULACAO LTDA - ME - APELADO(A)(S): VICTOR LELIS BRAGA DE ALMEIDA. [...]
Observe-se, então, que além de toda a legislação explicitada, entramos num âmbito de colisão de direitos fundamentais.
Sobre o tema, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins afirmam – no livro Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, editora Revista dos Tribunais – que:
As colisões e restrições nascem, como já constatado, porque o exercício de um direito fundamental entra em conflito com outro ou com outros preceitos constitucionais (bens jurídico-constitucionais) [...] e a proibição de publicar determinadas fotografias é ditada pela necessidade de proteger a privacidade e o direito à imagem enquanto direitos fundamentais. Tarefa da doutrina jurídica e dos tribunais é traçar os limites que permitam o exercício harmônico daqueles direitos fundamentais colidentes, por mais difícil que seja a definição dos critérios para a solução da colisão.
Os autores também citam Steinmetz, que ensina: “Há colisão de direitos fundamentais quando, in concreto, o exercício de um direito fundamental por um titular obstaculiza, afeta ou restringe o exercício de um direito fundamental de um outro titular”.
Nesse cenário, o STF, no julgamento da ADPF nº 130, reconheceu tamanha força à liberdade de expressão que declarou sua precedência em relação aos direitos relativos à imagem, à honra, à intimidade e à vida privada.
Diante de tudo isso, há uma reflexão importante a ser feita: evidente que em um país como o Brasil, que enfrentou 21 anos de ditadura militar – que podou pensamentos, posicionamentos, manifestações contrárias ao regime, punindo inclusive de morte aqueles que o enfrentavam – a liberdade de expressão é primordial. Contudo, a famosa frase que diz “o seu direito termina quando começa o direito do outro” não deve ser ignorada, já que vivemos em uma sociedade, que é plural em gostos, sotaques, cores e pensamentos.
Assim, entendo que nada mais justo do que se avaliar a situação fática enfrentada em casos emblemáticos, com a finalidade de verificar, sim, se há responsabilidade dos criadores de conteúdo – que são modelos e fontes de inspiração para muitos membros da sociedade atual – nos resultados amargos experimentados pela população, que sente de perto as consequências do chamado “efeito manada”.
[1]Disponível em: https://influency.me/blog/o-que-e-marketing-de-influencia/#Acesso em 5 jun 2025.
[2] Disponívelem: https://exame.com/marketing/78-dos-consumidores-brasileiros-confiam-em-recomendacoes-de-influenciadores-diz-estudo/Acesso em 5 jun 2025
[3] Idem.
[4]Disponível em: Acesso em 17 jun 2025.
[5]Idem.
[6]Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-abr-16/influenciador-fala-mal-de-empresa-que-contratou-publicidade-e-e-condenado-pelo-tj-mg/Acesso em 11 jul 2025