INTRODUÇÃO
O advento do Código Civil de 2002 representou um marco de modernização e sistematização do Direito Privado brasileiro, promovendo maior equilíbrio entre liberdade contratual e função social dos institutos civis. Contudo, passadas mais de duas décadas de sua promulgação, transformações socioeconômicas, tecnológicas e culturais impõem novos desafios à dogmática civilista. Nesse cenário, o Projeto de Lei nº4/2025, oriundo dos trabalhos de uma Comissão de Juristas presidida pelo ministro Luís Felipe Salomão, visa realizar uma profunda atualização do diploma civil, com impacto direto em 1.122 artigos.
No campo das obrigações, contratos e responsabilidade civil, o projeto reafirma princípios já consolidados, mas também introduz inovações relevantes, buscando conferir maior segurança jurídica, previsibilidade e adequação às dinâmicas contratuais contemporâneas, inclusive digitais.
RESPONSABILIDADE CIVIL E DANOS MORAIS
O Projeto de Lei nº 4/2025 propõe significativas alterações na disciplina da responsabilidade civil, visando a equilibrar a reparação dos danos com maior segurança jurídica e previsibilidade das decisões judiciais. Um dos principais pontos de mudança diz respeito à fixação de valores para danos morais, que, historicamente, têm sido objeto de grande controvérsia na jurisprudência. Nesse sentido, merece destaque as seguintes propostas de alteração:
· Limitação dos Danos Morais e Critérios de Fixação
Atualmente, o Código Civil de 2002 não estabelece parâmetros objetivos para a fixação do valor da indenização por danos morais, deixando a critério do magistrado a definição do quantum indenizatório, que deve se ater a princípios como o da razoabilidade e o da proporcionalidade.
O projeto estabelece critérios objetivos para a fixação do valor das indenizações (art. 994-A), considerando impacto na vida da vítima, seja ela pessoa física ou jurídica –consoante amplamente reconhecido pela jurisprudência pátria – e possibilidade de reversão do dano. Em casos de dolo ou reincidência, a sanção pode chegar a quatro vezes o valor dos danos morais, considerando-se a condição econômica do ofensor e a reiteração da conduta ou atividade danosa, a ser demonstrada nos autos do processo.
Essa mudança visa a reduzir a subjetividade das decisões judiciais e trazer maior previsibilidade às empresas (consoante amplamente consolidado pela jurisprudência pátria) e aos cidadãos.
· Responsabilidade Civil e a Cláusula de Não Indenizar
Outro ponto sensível da reforma é a possibilidade de estipulação da cláusula de não indenizar, excetuando-se os casos de dolo ou culpa grave. Isso significa que, em determinados contratos, desde que seja bilateralmente ajustada, as partes poderão limitar previamente a responsabilidade civil.
Embora a jurisprudência já admita pactuações semelhantes em relações entre partes equiparadas, sua positivação suscita debates sobre os limites da autonomia privada, sobretudo diante de eventuais desequilíbrios contratuais.
A previsão ganha relevância em setores específicos como seguros, logística e tecnologia, contudo, faz-se relevante destacar que demandará do Judiciário uma atuação rigorosa quanto à higidez da manifestação de vontade e à vulnerabilidade contratual.
· Ampliação da Responsabilidade aos Atos no Âmbito Digital
A reforma também contempla um avanço significativo no que tange à positivação e regulamentação da responsabilidade civil em ambientes digitais por danos decorrentes de seus serviços, notadamente, em casos de vazamento de dados, disseminação de desinformação e omissão na moderação de conteúdo ilícito. Alinhada às discussões internacionais e às diretrizes da LGPD, essa previsão reforça a necessidade de atuação diligente das empresas no ambiente digital, reafirmando o dever de prevenção e mitigação de riscos.
DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E CONTRATOS
· Liberdade Contratual
O PL 4/2025 reafirma os princípios da autonomia privada e da liberdade contratual, promovendo a intervenção mínima do Estado nas relações privadas e a excepcionalidade da revisão contratual (art. 421). Todavia, a proposta mantém a exigência de respeito à função social do contrato, sem, no entanto, oferecer parâmetros mais objetivos para sua aplicação, o que pode gerar insegurança jurídica e litigiosidade excessiva, dada a natureza ainda fluida do conceito.
· Sociedades estrangeiras e exigência de sede no Brasil
A proposta exige que sociedades estrangeiras mantenham sede física no território nacional para o exercício de atividade empresarial, ainda que exclusivamente digital. A medida visa assegurar a aplicabilidade das normas brasileiras e a efetividade das decisões judiciais, contudo pode onerar ou desestimular investimentos externos, especialmente de startups e empresas com modelo de operação digital.
· Desconsideração da personalidade jurídica de associações
O texto da proposta de reforma reforça o caráter excepcional da desconsideração da personalidade jurídica, mas inova ao prever a desconsideração da personalidade jurídica de associações. No caso das associações, o projeto prevê a responsabilização patrimonial apenas dos associados que tenham poder de direção ou influência. No entanto, expressões genéricas como “poder de direção” e “poder capaz de influenciar a tomada da decisão que configurou o abuso da personalidade jurídica” podem ampliar a responsabilização de associados, trazendo eventuais riscos e imprevisibilidade sobre o tema.
· Correção de Dívidas Civis
Para a correção de dívidas civis, o projeto de lei 4/2025 propõe juros moratórios de 1% ao mês quando estes não forem convencionados ou o forem sem taxa estipulada. Ocorre, no entanto, que o texto proposto vai na contramão do que dispõe a recente Lei 14.905/2024, que alterou os artigos 389 e 406 do Código Civil, estipulando pela aplicação da Selic subtraído o IPCA (ou outro índice previsto em eventual lei específica), como juro moratório.
Insta salientar, contudo, que o texto da reforma está alinhado à tese proposta pelo Ministro Salomão por oportunidade do julgamento do REsp 1.795.982, sub judice perante a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, sobre o tema no último ano. Na ocasião, o ministro restou vencido.
Antes da supra mencionada lei, os tribunais pátrios não corrigiam dívidas civis pela Selic. A opção mais comum era impor justamente os juros de 1% ao mês, mais correção monetária por índice à escolha da corte (IPCA, IGP-M, INPC e outros).
CONCLUSÃO
A proposta de reforma do Código Civil, em matéria de obrigações, contratos e responsabilidade civil, revela-se tecnicamente densa e socialmente relevante, ao buscar modernizar institutos tradicionais e alinhar o ordenamento jurídico às exigências da sociedade contemporânea e da economia digital.
A introdução de critérios objetivos para a fixação de danos morais, a regulamentação da cláusula de não indenizar e a disciplina sobre responsabilidade digital refletem uma tentativa de equilibrar liberdade contratual e proteção da parte vulnerável, segurança jurídica e dinamismo econômico.
Contudo, algumas inovações— como a exigência de sede física para sociedades estrangeiras, a previsão ampla de desconsideração de personalidade jurídica de associações e a possível revogação da sistemática da Selic — exigem reflexão crítica e técnica mais aprofundada, a fim de evitar retrocessos ou contradições sistêmicas.
Assim, a efetividade e a legitimidade da reforma dependerão não apenas de sua promulgação, mas de sua interpretação prudente, constitucionalmente orientada e socialmente sensível pelos operadores do Direito.